Caso Celso Daniel

Silêncio de Sérgio Gomes em
2002 garante Lula presidente

  DANIEL LIMA - 18/02/2022

O que os promotores criminais instalados em Santo André tanto queriam ao melar o jogo de Crime Comum do Caso Celso Daniel o primeiro-amigo e segunda maior vítima do crime que abalou o Brasil não deu jamais. Se desse, tudo seria diferente. O PT se ferraria.  

Estávamos em 2002, ano em que Lula da Silva concorria pela quarta vez seguida à presidência da República. Acabou virando presidente. O PT governou o País por 15 anos.  

Se Sérgio Gomes desse o que os promotores queriam, Lula da Silva teria dançado.  

A imaculada imagem do PT avesso à derrapagens públicas com dinheiro do contribuinte teria ido ladeira de escândalo eleitoral abaixo. Sérgio Gomes, socialista convicto, segurou a barra. Mesmo pagando muito caro por isso. Virou vilão nacional. Ou seja: o homem que mandou matar Celso Daniel. O primeiro-amigo de Celso Daniel virou primeiro-inimigo de Celso Daniel. E não falta gente que acredita nisso. Mesmo com todas as provas em contrário.  

VIRADA DO JOGO  

Crime Comum virou Crime de Encomenda. E ele, Sérgio Gomes, melhor amigo de Celso Daniel, se tornou mandante do assassinato.  

Conto no oitavo e último episódio do documentário do Estúdio Escarlate e da Globoplay o que Sérgio Gomes da Silva me disse, chorando, primeiro sábado de liberdade após mais de 200 dias preso por conta do assassinato do prefeito de Santo André.  

Aquela era a segunda vez que me encontrava com Sérgio Gomes da Silva, a quem o Ministério Público incorporou a alcunha de “Sombra” para estigmatizá-lo junto à opinião pública. Vira Sergio Gomes ocasionalmente antes de ser denunciado e preso. Conto isso também no documentário.  

SOMBRA INCRIMINATÓRIA  

Sombra era um dos codinomes de Sérgio Gomes. O outro era Sérgio-chefe, restrito aos mais próximos da administração de Celso Daniel. Frequentava quase nada o Paço Municipal. Tanto que mal sabia que Sérgio-chefe era o Sérgio Gomes da Silva mais intestino na gestão de Celso Daniel.  

Sombra era um verbete senão acusatório utilizado por inimigos mais próximos, mas ganhava a força de porta de entrada a desconfianças sobre os poderes que teria na cúpula da gestão de Celso Daniel.  

O que mais a política tem em todas as instâncias são réplicas de Sérgio Gomes. A banda que hostilizava a gestão petista o contemplara com um apelido comum, portanto. E que se tornou autoincriminatório após aquela noite de 18 de janeiro de 2002 nos Três Tombos. 

A história de Crime de Encomenda colou na cabeça da maioria da sociedade por razões já explicadas, tanto quanto a insensatez que embute: não há registro na historiografia política internacional, nem mesmo nas anedotas de personagens como Chaves e tantos outros da indústria de divertimento raso, que alguém que seja Sombra vire deliberadamente Holofote.  

CONDICIONAMENTO COLETIVO  

Pois não é que a anencefalia coletiva que consome o Caso Celso Daniel tornou uma aberração, uma estupidez, um desproposito, verdade absoluta? 

Não era amigo de Sérgio Gomes. Nem compartilhava da amizade de seus amigos. Mas quando ele me telefonou ainda na estrada, emocionado, me convidando ao churrasco, ele que acabara de deixar um presídio no Interior de São Paulo, não resisti. E fui à casa dele num condomínio fechado e rural em Santo André, divisa com Ribeirão Pires. 

Foi ali que ouvi Sérgio Gomes dizer o que disse. Fiquei estupefato não pelo conteúdo previsível, mas pela forma espontânea e desabafada. 

Sérgio Gomes não me pediu confidencialidade, mas aquele momento era muito especial. Guardei por 17 anos o segredo que contei aos cineastas Marcos Jorge e Bernardo Rennó do Estúdio Escarlate. Desabafei em 8 de maio do ano passado, quando passei horas nas gravações para o documentário.  

HONRA PARDIDÁRIA  

Achava que era o momento apropriado para salvar a honra partidária de Sérgio Gomes da Silva, um dos homens responsáveis pela arrecadação paralela na Administração de Celso Daniel. Aliás, a única verdade fundamentada, comprovada e irrebatível do Crime de Encomenda inventado pelo Ministério Público.  

Sérgio Gomes da Silva era o alvo principal dos promotores criminais de Santo André após o assassinato de Celso Daniel e o contragolpe do governador Geraldo Alckmin.  

O grão-tucano estava irritado com a politização do crime pelos petistas. Os petistas politizaram o crime como qualquer agremiação política o faria. O mundo cão da política é assim mesmo. É preciso ter estômago.  

CRIME ESPALHADO  

O Crime Comum era resultado do estágio de derretimento da Segurança Pública no Estado. Sequestravam-se a dar com pau. Banalizaram esse tipo de crime. Celso Daniel fora mais um. O publicitário Washington Olivetto o antecedeu, 40 dias antes.  

O PSDB chegou à conclusão de que não havia alvo melhor que Sérgio Gomes da Silva para dar um troco no PT. A morte do prefeito Celso Daniel virou guerra de estratégias. 

Os efeitos de uma confissão de Sérgio Gomes da Silva seriam múltiplos e, principalmente, atingiriam duramente a candidatura favorita de Lula da Silva à presidência da República, em outubro daquele 2002.  

RESISTENCIA TOTAL  

A operação era simples, segundo a ótica tucana, cujo braço armado de legalidade investigativa, era fazer com que os promotores criminais rapidamente levados a Santo André obtivessem de Sérgio Gomes da Silva uma confissão tácita: o PT operava em Santo André um sistema de arrecadação paralela de dinheiros de fornecedores, principalmente no setor de transporte coletivo.  

A confissão de Sérgio Gomes da Silva seria devidamente compensada. A delação premiada incorporaria vantagens. Sérgio Gomes da Silva me disse mais tarde, em encontros em seu apartamento, coisas que talvez revele dias destes.  

O resumo da ópera é que estaria com a barra limpa e o PT de Lula não escaparia à curadoria cruel de um eleitorado que divinizava o candidato Lula da Silva em escala suficiente para virar presidente de um País, para variar, em frangalhos.  

HOMEM DE CONVICÇÕES  

O que tucanos e assemelhados não sabiam é que Sérgio Gomes da Silva não era o homem que imaginavam que fosse, ou seja, um oportunista, um ambicioso que ancorou no Paço Municipal, ganhou espaços não oficiais no organograma da gestão de Celso Daniel e faria qualquer coisa para meter a mão em dinheiros. Inclusive para, conforme a aberração interpretativa do MP, mandar matar Celso Daniel. Alguém mataria a galinha dos ovos de ouro? Só na cabeça de quem não tem cabeça. 

Sérgio Gomes da Silva resistiu bravamente porque era um homem de ideologia. Assim como tantos petistas, queria ver Lula da Silva presidente. Fazia parte, portanto, da estrutura paralela de recursos financeiros que seriam aplicados na campanha eleitoral.  

Santo André era um laboratório de sucesso. A gestão brilhante de Celso Daniel como administrador público comportava essa outra metade da laranja.  

METADES DA LARANJA  

Uma metade da laranja que pode até mesmo ser chamada de podre, mas que não era luma metade da laranja novidadeira em Santo André ou em qualquer grande ou médio Município, para não falar nos pequenos.  

Dinheiros paralelos fazem parte de agremiações político-partidária tanto quanto o fanatismo de torcedores de futebol. O PT apenas sistematizou o processo. O fanatismo se alargou em forma de torcidas organizadas nas arquibancadas de futebol.  

Não se pretende, claro, naturalizar qualquer irregularidade. Apenas chamar a atenção à hipocrisia latina.  

Como o primeiro-amigo de Celso Daniel não cedeu à tentação da delação premiada, porque ceder à tentação da delação premiada seria entregar a própria alma partidária e ideológica, o Ministério Público nomeado a mando do governador do Estado fez gato e sapato da operação diversionista e justiceira do Caso Celso Daniel. Sérgio Gomes da Silva foi massacrado. Mas segurou a barra de Lula da Silva e do PT. 

CONTANDO UM SEGREDO  

Contei o que contei no documentário sobre a confissão de Sérgio Gomes da Silva naquela churrascada por pelo menos três razões incontroláveis quando vistas entrecruzadamente.  

Primeiro, senti firmeza, responsabilidade e seriedade dos profissionais que cuidavam do documentário da Globoplay.  

Segundo, era preciso resgatar a história na plenitude, sem vácuos.  

Terceiro, Sérgio Gomes, morto em 27 de setembro de 2016, precisava ser redimido.  

A condição de mandante do assassinato de Celso Daniel imposta pelo MP e sufocada com provas por todas as instâncias policiais só seria esterilizada de vez com o testemunho dele, Sérgio Gomes, de que havia sim desvios na Administração de Celso Daniel. “Tudo pela causa”, como disse o anfitrião daquele almoço.  

RESULTADO ARRASADOR  

Não conheço um petista que, ao tomar conhecimento do que agora revelo (não a confissão em si de Sergio Gomes, mas o esquema de arrecadação paralela na Prefeitura de Santo André como combustível eleitoral na campanha de 2002) tenha a menor dúvida de que Lula da Silva seria destroçado.  

O PT limpinho da Silva teria se dissolvido eleitoralmente mesmo. A virgindade seria deflorada por um petista íntimo de Celso Daniel. Um petista que ousou trocar a própria liberdade pela presidência da República de um terceiro. 

Por isso mesmo o contragolpe tucano em São Paulo, com o jogo pesadíssimo de tornar Crime Comum, Crime de Encomenda, foi detonado assim que se chegou à constatação de que Sérgio Gomes da Silva não contaria nada vezes nada dos bastidores da Prefeitura de Santo André. Era uma batalha perdida.  

Os dois últimos episódios do Caso Celso Daniel na Globoplay são emocionantes. Vou me ocupar deles na próxima semana. Na segunda-feira pretendo fazer uma análise individual dos principais personagens que desfilaram informações.  

Esses entrevistados foram os agentes do jogo jogado, uma competição de mata-mata de quatro tempos. Dois jogos de dois tempos cada um. 

PRECIOSIDADE AUDIOVISUAL  

O resumo de tudo que vi várias vezes é reto e direto, e vou estender as explicações na semana que vem, repito, na medida em que analisar os depoimentos: a versão de Crime Comum aplicou uma surra homérica na versão de Crime de Encomenda. Uma barbaridade de goleada.  

Mas essa goelada precisa ser mitigada no sentido de opinião pública que, após anos e anos de versão única, de fake news, de controle midiático, é francamente favorável às bobagens de Crime de Encomenda.  

“O Caso Celso Daniel” não é um documentário qualquer e que, portanto, deve ser avaliado segundo ótica individual, de cineastas, críticos de arte, forças policiais, forças ministeriais, público em geral.  

“O Caso Celso Daniel” é uma obra-prima de inteligência conceptiva. Com sutileza, intenso conhecimento dos fatos e nuances espetacularmente discretas, revela o nível de capacitação dos profissionais do Estúdio Escarlate.  

Ou seja: “O Caso Celso Daniel” não é para amadores nem principiantes ou mesmo para especialistas temáticos.  

“O Caso Celso Daniel” é múltiplo por natureza do próprio enredo factual e do enredo mentiroso, fraudulento, do assassinato do maior prefeito regional do Grande ABC gerou.  

Um Celso Daniel que, nas palavras do advogado criminalista Luiz Eduardo Greenhalgh, um dos destaques entre os entrevistados do documentário, seria o sucessor de Lula da Silva na presidência da República. A mesma presidência da República blindada pelo primeiro-amigo de Celso Daniel.

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